Um Rosto é uma Maré.
Tenho uma cena que me impactou essa semana. Ela volta de maneira recorrente, como uma onda que insiste em bater na mesma pedra. E eu, que leio o mundo pelos símbolos e me deixo fritar pelas camadas invisíveis das coisas, me pergunto: o que essa imagem quer de mim? O que ela diz sobre mim?
A imagem é simples, mas carregada.
Eu estava andando na rua com meu companheiro e nossa filha, um passeio qualquer, cotidiano, quando cruzamos com uma mulher de meia-idade. Pessoa pública, dessas que a gente reconhece de longe porque já viu com frequência ao lado do marido e dos filhos. Mas, naquele dia, algo estava diferente.
O semblante dela estava abatido. O rosto inchado. Os cabelos, assustados, pareciam descrever um caos interno. Um vestido largo que parecia mais um refúgio do que uma escolha. Eu e meu companheiro nos olhamos, e depois de passarmos por ela, ele soltou a pergunta inevitável:
“O que será que aconteceu? Ela não parece bem.”
Sem nem pestanejar, ele cravou:
“Aposto que o marido deixou ela. E ele deve estar voando.”
A frase dele me deu um nó no estômago.
“Machista!”, rebati na hora. “Terminar uma relação não é necessariamente um motivo pra desestabilizar uma mulher. Ou pelo menos não deveria ser.”
Mas ele, mais fofoqueiro que eu, foi investigar.
E acertou na mosca.
Isso me deixou tão triste. O olhar dela cruzando com o meu ficou preso na minha retina, como uma fotografia que alguém insiste em me mostrar.
Onde tem eu nela?
Fico pensando no que significa, para uma mulher, ser deixada. Como a rejeição nos atravessa, nos desmonta. Como ser amada é, tantas vezes, a medida do nosso valor. A prateleira do amor: ou você está lá, sendo escolhida, ou você está fora do mercado. Mas não é só isso.
Há um desamparo primordial nessa imagem. Uma ruptura que parece nos arrancar da terra firme e nos lançar ao mar aberto. O que significa ver a construção de uma família – algo que você provavelmente investiu tanto em criar – se dissolver?
O rosto dela me dizia tudo. O inchaço, talvez de mágoa, talvez de remédios, me parecia um mapa de águas paradas, represadas. Claro que, segundo as fofocas, tudo parece “ok”. Ela está seguindo, “lidando”. Mas, pra mim, a cena bateu forte.
Porque ali estava eu, com a minha família, com a ilusão de construir algo, e a vida me jogou essa imagem na cara. A minha, a dela.
Ninguém constrói nada além de si mesmo.
A dureza de ser macio é o que melhor define essa imagem. O encontro com o outro é sempre uma dança de morte e renascimento. Tudo atravessa, corta e, por vezes, nos afoga. Ainda que não seja de bom tom parecer uma mulher vulnerável por aí. Ainda assim, apesar de não estar legalizada a tristeza, a insuficiência e os caldos, a gente segue a regra da desobediência e vai comprando esses baratos no mercado clandestino.
Relacionamentos são esportes radicais nas águas internas. Navegar por elas é um esporte de risco. Mas também é necessário. Todas nós temos que navegar, sabendo que, cedo ou tarde, quem está na água vai se molhar.
O mar não é estático. Ora somos onda, ora somos mar.
E talvez seja isso que essa imagem queira de mim: me lembrar do confronto inevitável com minhas próprias sombras. Um convite da vida pra olhar.
O rosto, uma maré que é mais do que um reflexo - uma dissolução, mas também a potência do renascimento.
O que vi na rua não era apenas ela. Era um pedaço de mim que reconhece o caos como terreno fértil, o desamparo como prelúdio da reconstrução. Na dissolução, há o convite para criar algo novo – não sobre o outro, mas sobre si mesma.
Porque, como Jung nos lembra, “somos o oceano, e não a ilha” – e é na imensidão dessas águas que a gente encontra não só as nossas feridas, mas também as nossas possibilidades de cura. Somos a matéria prima da cura.